domingo, 25 de junho de 2017

Vida às avessas lll (o retorno)



Durante o percurso até a rodoviária, a menina que teve a voz presa na garganta por muito tempo, disparou a falar com o avô:

- Vovô, estou feliz que tenha vindo me buscar. Eu estava pensando que ficaria naquela casa até completar a maioridade. Se isso acontecesse eu fugiria quando aparecesse uma oportunidade. Já estava pensando nisso. 

- Não fale besteira, menina. Nem comente isso com a sua mãe, ela estava desesperada para reaver vocês. Não se conformava por ter que ficar longe dos filhos, coitada.

- Se eu fugisse daquela casa, vovô, seria para ver a mamãe e meus irmãos. Como eles estão?

- Primeiro vim buscar você, Ariana, porque era a única de quem não tínhamos notícias. Seus irmãos estão próximos um do outro, morando na mesma cidade. Serão levados para casa amanhã.

- Por que só eu vim morar tão longe, vovô?

- Porque seu tio Jesuíno é o único que mora bem afastado da família. Estaremos em casa na hora da janta, se o ônibus não atrasar.

- O senhor deve estar cansado de vir e voltar no mesmo dia.

- Um pouco, mas vou descansar no ônibus. Na vinda, dormi durante toda a viagem. 

- Nem acredito que vou ver a mamãe, a vovó e meus irmãos.

- Será que você não vai sentir saudade da sua tia, minha menina?

- Que tia, vovô? Aquela mulher nunca me tratou como uma pessoa da família.

- Pensei em esperar seu tio chegar do serviço para ter uma conversa séria com ele. Na ida, passei na fábrica, mas só contei a ele que ia te levar embora. Ele estava trabalhando e eu estava com pressa. Mas, pretendo voltar outro dia, para lhe dar um puxão de orelha.

- Sabe de uma coisa, vovô? Não quero mais pensar naquelas pessoas. Se um dia eu encontrá-las, por acaso, apenas as cumprimentarei como cumprimentaria qualquer pessoa. Não pelo fato de me obrigarem a fazer o trabalho da casa, mas por me ignorarem.

A conversa entre os dois continuou mesmo depois que entraram no ônibus. Ariana passou tanto tempo falando consigo mesma que estava amando o fato do avô estar ali ouvindo-a e conversando com ela.

Quando percebia que ele estava cochilando iniciava outra conversa. Estava tão empolgada por estar voltando para sua família que não conseguia se conter. Como estavam seus irmãos? 

José Carlos era dois anos mais novo que ela e Elizandra, a caçula, estava com doze anos. Como sentia falta das brincadeiras no quintal e dos banhos no rio! Sua brincadeira predileta era jogar bola com o irmão. 

Será que durante esse tempo que seus irmãos passaram na casa dos tios foram bem tratados? Ela não via a hora de saber como tinham sobrevivido durante esse tempo sem a mãe. A caçula era muito apegada a ela. 

Numa das paradas do ônibus, Ariana olhou para o avô e viu que ele estava apreciando a paisagem. 

- Vovô, você está me ouvindo? 

- Sim, minha neta. Pode continuar falando. Não tenho todas as respostas, mas amanhã quando seus irmãos chegarem, saberemos.

- Estou muito curiosa para saber o que a mamãe tem para nos contar. Deve ser coisa boa se ela mandou nos buscar.

- Prometi a ela que não ia te contar nada. Tenha paciência, menina!

- Desculpe, meu avô, não vou perturbar mais o senhor. Sou grata por ter me tirado daquela casa.

Ao chegarem no ponto final da viagem, o avô pegou a neta pelo braço e caminharam, em silêncio, até chegarem em casa. Estava uma noite clara, noite de lua cheia. Nem sentiram os três quarteirões que andaram. 

Mil pensamentos povoavam a mente da Ariana. Três anos se passaram desde que vira a mãe pela última vez. Três anos de reclusão para ela. Três anos sem ter com quem conversar. Três anos de solidão, de sofrimento. Três anos que esperava esquecer, apagá-los da memória.

Assim que chegaram, Ariana olhou para a casa dos avós e suspirou! Sentiu uma paz tão grande que pensou que fosse morrer ali, naquele momento.

Depois de viver longe da sua família, das pessoas que amava, por três terríveis anos, Ariana precisava compensar o tempo perdido.

Ela perdera parte da infância e adolescência. Ficara atrasada na escola. Tornara-se uma ótima dona de casa, aprendera a cozinhar e a tricotar. Poderia ajudar a mãe a refazer a vida.

Nesse período em que ficou longe da família, Ariana percebeu que era uma moça forte, pois conseguiu suportar as humilhações que lhe foram impostas.

Durante esse tempo ela chorou, apenas, uma única vez.

Qual a surpresa que a vida tinha lhe reservado? Será que a mãe arrumara um marido?

Continua!

PS: Desenho feito pelo meu sobrinho Marcos Wagner.

Sua visita é muito bem vinda, obrigada!

Volte sempre que estiver com vontade de ler.
Você encontrará aqui no blog vários textos reflexivos e contos baseados em histórias reais.


Uma semana abençoada!!

Cidália.


Seguem os links do capítulos anteriores:











domingo, 18 de junho de 2017

Vida às avessas ll (a chegada do avô)


Conforme o tempo ia passando aquela pobre menina fazia o impossível para se manter forte. Sentia muitas saudades da mãe e dos irmãos.

Todas as noites, antes de dormir, fazia sua oração pedindo a Deus que sua mãe viesse buscá-la. Tinha esperança de voltar a viver com a sua família.

Ali, naquela casa, Ariana não tinha com quem conversar. Desenvolveu o hábito de falar sozinha enquanto realizava suas tarefas.

Depois que aprendeu a cozinhar, seu serviço aumentou. Era ela quem cuidava de tudo. Era a primeira a acordar e a última a dormir. As palavras que proferia diariamente eram:

- Sim, senhora! - Sim, senhor!

Aos quatorze anos de idade, Ariana era responsável pela casa dos tios e ainda encontrava tempo para tricotar meias e cachecóis com restos de lã que a tia começou a lhe dar, depois que a viu, um dia, observando-a tricotar.

O primeiro Natal que passou longe da família foi muito triste para Ariana. Ela viu os tios e as primas saírem, bem vestidos, para irem à igreja. Naquela noite ela foi dormir cedo.

Na manhã seguinte viu a alegria das primas ao desembrulharem os presentes. Lindas bonecas.

- Ariana, o café está pronto? - perguntou a tia.

- Sim, senhora.

- O que você está esperando para arrumar a mesa? Não tem nada aqui pra você ficar olhando - falou uma das primas.

Ariana não respondeu a prima, abaixou a cabeça e foi para a cozinha. Ela não tinha folga e nem remuneração. Pagava a sua estadia com o trabalho. Vestia e calçava o que a tia lhe dava, aquilo que ela não queria mais. Roupas e calçados usados.  O que ela tinha de novo eram as meias e os cachecóis que fazia. pelo menos podia se agasalhar no inverno.

Ela gostaria de ter seu próprio dinheiro para comprar linhas e lãs para fazer outras coisas além de meias e cachecóis.

O tempo passava e a saudade aumentava. Queria perguntar ao tio se ele tinha notícias da sua mãe, porém não se atrevia a falar com ele. Desde que estava naquela casa, nunca havia recebido uma palavra ou gesto de carinho dele. O jeito era esperar. Tinha certeza de que assim que pudesse, sua mãe viria buscá-la.

Muitas vezes, quando perdia o sono, Ariana pensava no tio. Desde que chegara, nunca o ouviu falar sobre a mãe dele, sua avó ou sobre o avô que a trouxe para viver ali. Foi seu avô quem a levou, assim como levou seus irmãos para a casa de outros parentes.

Ao completar dezesseis anos, Ariana recebeu, certo dia, a visita do avô. Ela estava preparando o almoço quando ele apareceu.

- Menina, como você cresceu! Está uma bela moça. Sua mãe tem uma surpresa para você e seus irmãos.

Seu avô não reparou em suas vestimentas. Não viu que ela estava usando avental e um lenço na cabeça.

- Onde está sua tia? Sei que seu tio está trabalhando, já falei com ele.

- Ela deve estar na sala de costura, vovô, com as filhas. E a mamãe como está? Estou sentindo muita saudade dela e dos meus irmãos.

- Ela também sente saudades de vocês, mas espero que me entendam que não pudemos agir de outra maneira. Eu e sua avó não tínhamos condições de sustentar todos vocês.

- Eu entendo, vovô e sei que meus irmãos, também, entendem.

- Muitas vezes sua mãe quis visitar vocês para saber como estavam passando, porém a falta do dinheiro a impediu de viajar. Ela trabalhou todo esse tempo fazendo compotas e bolos para juntar algum trocado. Por isso estou aqui hoje, ela me deu o dinheiro para a sua passagem e a de seus irmãos. Eu não pago a passagem por causa da idade.

- O dinheiro não vai fazer falta para ela, vovô?

- Não vou falar mais nada, mocinha, senão vou estragar a surpresa da sua mãe. Vou falar com a sua tia. Depois do almoço nós vamos embora. Enquanto converso com ela, vá arrumar as suas coisas.

Ariana terminou o almoço, arrumou a mesa e foi para seu quartinho. Estava transbordando de alegria. Sentiu vontade de pular e cantar. Ela ia rever sua mãe e seus irmãos. Deus ouviu as suas preces.

Seu avô foi procurar pela nora. Chegando ao quarto de costura a viu ensinando as filhas um novo ponto de crochê.

- Como vão vocês, Iracema e minhas netas queridas?

- Estamos bem e o senhor? Que bons ventos o trazem sem nenhum aviso prévio? - a nora perguntou, levantando-se para cumprimentá-lo.

- Olá vovô, que saudades! - as gêmeas o abraçaram.

- Vim buscar a Ariana, já passei na fábrica e falei com o Jesuíno.

- E quem é que vai cuidar da comida e da casa? Não posso ficar sem ninguém, a casa é grande e preciso de ajuda.

- Coloque as meninas para te ajudar. A Ariana já ficou tempo demais longe da família. Pelo que pude ver, a pobre menina ficou no lugar da empregada. Ela até poderia ajudar, mas não assumir a responsabilidade da casa. Vou conversar com o Jesuíno, ele deveria ter tratado melhor a sobrinha.

- O que foi que essa mal agradecida foi falar para o senhor? Ela não tem nada do que reclamar, tem que dar graças a Deus pelo nosso acolhimento.

- Ela não precisou falar nada, eu vi com meus próprios olhos. Quando entrei na cozinha pensei que fosse encontrar a Clotilde.

- Pelo menos agora ela será mais útil, poderá ajudar a mãe. - Iracema proferiu a frase encaminhando-se à cozinha. As gêmeas e o avô a seguiram.

Sentaram-se à mesa e se serviram. Iracema não esperou pela sobrinha. A comida estava muito boa. 

Quando Ariana voltou para a cozinha sem o avental e o lenço na cabeça, a tia perguntou:

- Você não vai deixar a cozinha arrumada antes de ir embora?

- Venha almoçar menina, sente-se ao meu lado - disse o avô - sua tia e suas primas vão cuidar da cozinha hoje.

Iracema não se atreveu a responder o sogro. Sentiu vontade de respondê-lo, porém preferiu ficar calada. O jeito seria pedir ao marido, no final do dia, que chamasse a Clotilde de volta.

Cabisbaixa, Ariana se sentou ao lado do avô. Durante o tempo que permaneceu naquela casa foi a primeira vez que sentou à mesa com aquela família. 

Após o almoço silencioso, Ariana pediu licença e foi pegar suas coisas. Voltou com uma pequena trouxa. O avô a esperava na sala. Despediram-se e foram embora. Tinham uma pequena caminhada até a rodoviária.

Continua...

Acompanhe a história da Ariana acessando o link abaixo para ler a primeira parte deste conto:

http://contosdacabana.blogspot.com.br/…/vida-as-avessas.html


PS: Mais um desenho feito pelo meu sobrinho Marcos Wagner.

Sua visita me deixa muito feliz, obrigada!

Uma semana abençoada a você e sua família!!

Abraços,

Cidália





segunda-feira, 5 de junho de 2017

Vida às avessas (o sacrifício)




Aos treze anos de idade, Ariana viu seu mundo desmoronar. A família composta por cinco pessoas se desfez depois da morte do seu pai. Sua mãe ficou sem renda, pois os negócios eram feitos de boca, não havia documento assinado. Seu pai era comerciante. 

Cada filho foi morar na casa de um parente e sua mãe voltou para a casa de seus pais. Era uma época difícil. Os avós não tinham condições de ajudar a filha e os netos. Sua mãe não teve opção. Era para o bem de todos.

Ao chegar na casa dos tios onde ficaria, Ariana assumiu o lugar da empregada doméstica que foi dispensada no dia seguinte. Antes de partir, a empregada teve que mostrar à menina seus deveres.

Para a menina a mudança de vida foi drástica. Teve que deixar a infância para trás de uma hora para outra e aprender os ofícios domésticos. Limpar o chão era o pior dos serviços. Ela não era tratada como sobrinha e sim como uma serviçal.

Nem nas horas de folga ela podia brincar com as primas. Não a aceitavam por perto. Quanto às roupas, usava àquelas que eram dispensadas pelas meninas. Não importava que ficassem apertadas.

- Vai procurar o que fazer sua inútil – dizia a tia quando a via pelos cantos olhando as gêmeas brincando.

Muitas vezes ela pensava em contar ao tio, irmão da sua mãe, sobre o modo como era tratada pela tia e primas.

Porém, certo dia ouviu uma conversa entre o casal.
- Não sei porque você se ofereceu para cuidar dessa menina, Jesuíno. A nossa despesa aumentou, você não notou?

- Mas, querida, você dispensou a Clotilde e a menina Ariana é que está fazendo o serviço da casa.

- A Clotilde cozinhava  e essa menina não sabe cozinhar. Sou eu quem faço a comida agora. Ela ajuda descascando os legumes, é só o que sabe fazer na cozinha, além de comer muito.

- Por que você não a ensina a cozinhar? Está na hora dela aprender. Minha irmã deu moleza para os filhos. 

- A partir de amanhã vou ensiná-la. Já estou cansada de ir para a cozinha. 

Ariana, ouvindo aquela conversa, correu para o quarto dos fundos onde dormia e jogou-se na cama chorando.  

Naquela noite dormiu sem janta, ninguém sentiu a sua falta. Ela comia depois que todos jantavam. O que sobrava. Não se sentava à mesa com a família.

Provavelmente, naquela noite a família foi para a sala e nem viu que ela não foi tirar a mesa. Ela só era lembrada quando precisavam dos seus serviços.

- Ariana, faça isso! - Ariana, faça aquilo! - Ariana, você já fez o que te pedi? - Se apresse menina! 

Na manhã seguinte, Ariana acordou bem cedo, com muita fome, e foi para a cozinha. Precisava se conformar com a sua situação. Não tinha a quem recorrer. Levantou a cabeça, recolheu a louça da mesa, lavou e limpou o chão.

Assim que encontrasse sua mãe contaria a ela o que estava passando. Esperava que seus irmãos tivessem tido mais sorte que ela.

Sentia muita falta do seu pai. Se ele ainda estivesse vivo ela poderia estar em casa com seus irmãos. Ela não teria que se sujeitar àquela vida. Ao mesmo tempo sentia raiva dele. Culpava-o pelo modo que estava vivendo. Se ele não tivesse deixado sua mãe sem recursos nada daquilo teria acontecido. Infelizmente, porém, o armazém do seu pai faliu após a sua morte.

Quando sua tia a viu pondo a mesa para o café, de olhar cabisbaixo, chamou a sua atenção.

- Menina, por que amanheceu com essa cara emburrada? Você tem que agradecer ao seu tio. Se ele não a trouxesse pra cá, o que seria da sua mãe? Trate de fazer o serviço direito. A partir de hoje vou te ensinar a cozinhar. 

Naquele momento, Ariana sentiu vontade de responder, mas, apenas concordou com a cabeça sem levantar os olhos para ela. Queria ter coragem para responder que preferia estar morando debaixo da ponte com sua mãe e seus irmãos.

Ali, naquela casa, ela se sentia desprezada. Só lembravam dela na hora de pedir que fizesse algum trabalho. As primas não a chamavam para brincar e nem repartiam com ela algo diferente que estivessem comendo. Seu tio sempre trazia um doce para as filhas quando chegava do trabalho.

E assim, Ariana começou a aprender a cozinhar o arroz, o feijão, a fazer massas e bolos, entre outras comidas.

A tia estava satisfeita, a menina aprendia rápido e em poucos meses assumiria a cozinha. Seria um descanso para ela. 

O dia para Ariana começava muito cedo. Ela precisava dar conta de todos os afazeres domésticos. Fazia tudo em silêncio. Só falava quando os tios perguntavam alguma coisa em relação à casa.

Sentia saudades dos irmãos e das brincadeiras. Os brinquedos eram poucos, mas eles tinham muita imaginação e criatividade. Ela e os dois irmãos ajudavam a mãe nas tarefas simples como arrumar as camas, varrer a casa e lavar a louça. Sobrava muito tempo para as brincadeiras.

Suas poucas vestes estavam se acabando. Se aparecia um rasgo ela mesma costurava na mão para não incomodar a tia. 

Aos domingos, enquanto os tios iam à missa ela ficava em casa. Para passar o tempo pegava as agulhas de tricô da tia e com sobras de linhas que recolhia do lixo, tentava fazer alguma coisa. Procurava deixar sempre as agulhas no mesmo lugar, na sala de costura, para a tia não brigar com ela. Assim como fazia com a agulha e linha que usava para remendar a sua roupa.

Com o passar do tempo, os vestidos das gêmeas foram ficando pequenos para ela que, sendo dois anos mais velha, estava se desenvolvendo muito rápido.

- De agora em diante vou reformar meus vestidos para você, menina. Àqueles que estão encostados no guarda roupa. Você está comendo demais, por isso as roupas das suas primas não te servem mais.

A pobre Ariana sentia-se como a gata borralheira. Não tinha nenhum direito, apenas deveres. Sua vida estava às avessas!



Continua


Obrigada a todos pela visita!!

Beijos

Cidália.


PS: o desenho foi feito pelo meu sobrinho Marcos Wagner.