terça-feira, 4 de setembro de 2018

Através do espelho


Parada diante do espelho ao observar sua cabeleira desalinhada com os fios brancos se sobressaindo, Adelaide olha para dentro de si.

O que seus olhos encobertos pela catarata lhe mostram a deixam assustada. As rugas profundas numa pele sem vida, desnutrida. As sobrancelhas embranquecidas, os cílios ralos, os lábios enrugados.

Ela fica ali se analisando por alguns minutos. O que aconteceu com a mulher vaidosa que só andava com os cabelos bem cortados e penteados? 

Ela é consciente que desistiram dela e mais ainda de que ela própria desistiu de si. Olha-se mais uma vez e se enche de tristeza ao notar que suas roupas estão muito velhas. Os chinelos nos seus pés estão pequenos. Deve ser por causa do inchaço que deixaram seus pés maiores.

A imagem assustadora que ela vê diante de si não pode ser da mesma pessoa que foi até outro dia. Parece um espantalho.Seus dias são todos iguais, cinzentos, por mais que o sol brilhe lá fora.

Adelaide olha para as mãos e pensa em quanto tempo suas unhas não veem a cor de um esmalte.

O peso do seu corpo está bem acima do normal. A única coisa que ela faz durante o dia é comer. Ou melhor, uma das únicas coisas, a outra coisa é ficar sentada ou deitada diante da TV.

A TV é um mero passatempo que ela olha sem prestar atenção, sem se concentrar. A TV é sua companheira. Ela não presta atenção, mas ouve as vozes. Não se sente tão sozinha.

Pensa que seria bom ter uma revista para ler se seus olhos enxergassem as letras miúdas.
Quase não reconhece mais as pessoas que a cumprimentam quando a veem na frente de casa. Algumas pessoas ela reconhece pela voz.

Ainda diante do espelho ela fecha os olhos e se imagina há três anos antes de seu martírio começar.

Adelaide gostava de se arrumar, de comprar roupas novas como toda mulher, de comprar os calçados da moda, de frequentar o salão de beleza, de passear com as amigas.

No dia do pagamento parava nas lojas para pagar as contas e acabava sempre comprando algo mais.

Ela se adornava com brincos, colares e anéis de ouro. Chegara a frequentar a terceira idade. Era uma turma animada que gostava de viajar e dançar. Muitas vezes ela notara que algumas mulheres ficavam com ciúme dela. Ela chegara a arrumar uns dois pretendentes, mesmo com a escassez de homens naquela turma com um grande número de mulheres.

Sua casa estava sempre limpa, bem arrumada. Ela gostava de cozinhar e receber as amigas para o café da tarde.

Porém, um certo dia, lhe disseram que sua mente estava conturbada e que ela não poderia mais dirigir sua vida nem sua casa.

A partir daquele dia a cortina se fechou para ela. Sua sina era viver trancafiada no calabouço sem direito de sair à rua sozinha.

Para Adelaide, mesmo sem cadeado nas portas, a casa se tornara sua prisão.  Não lhe restou uma alternativa a não ser se entregar de vez. Uma voz lhe dizia para reagir. Ela precisava dar um grito de independência. Precisava voltar a ser uma mulher independente, útil e capaz de tomar suas próprias resoluções. Não podia desistir de si, pois as pessoas já haviam desistido dela.

Nenhuma vizinha se atrevia a visitá-la com receio de se afundar naquela melancolia. Adelaide exalava tristeza e derrota por todos os poros. 

Não, ela não queria contaminar ninguém com sua triste sina, nem queria que sentissem pena dela. Sabia que só ela poderia fazer algo por si mesma. Ela estava nas suas próprias mãos.

Aquela reflexão diante do espelho precisava lhe dar força para que ela escalasse o calabouço, abrisse a cortina e voltasse a ser a estrela principal no palco da vida.

                                                  Obrigada pela visita,

Cidália.

29 comentários:

  1. O espelho ele é um verdadeiro amigo mais também se torna um inimigo, amigo porque ele mostra quem você é, e inimigo mostra como você é, e esse conto nos traz uma reflexão que não podemos ficar no calabouço, Cidália bjs.

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    1. É verdade, Lucimar!! Muito obrigada pelo comentário!

      Beijos!

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  2. Infelizmente teu conto retrata a realidade de muitas pessoas no mundo. Se não vitimadas pelo Alzheimer, tomadas pela depressão que as afunda mais e mais no desânimo e na falta de perspectiva em relação a vida.
    Tens uma ótima escrita. Parabéns

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    1. Sim, Malu, infelizmente!! Muito obrigada pelo elogio e comentário!!

      Beijos!

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  3. A velhice é mesmo um momento de duras e, por vezes, atordoantes reflexões que fazemos conosco mesmos. Tudo se torna tão difícil. E quando os familiares passam a mão nas coisas do idoso como se ele fosse um incapaz de cuidar da própria vida - salvo as particularidades -, o sentimento de invalidez aumenta ainda mais. Precisamos rever isso. Precisamos garantir aos nossos sábios da tribo o protagonismo que merecem!
    Abraços! 😊

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    1. Pois é, Amilton, quem dera todos os filhos pensassem como você! Obrigada pelo comentário que complementou o meu texto!!

      Abraço!

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  4. Um conto que retratata uma realidade dos tempos atuais com muitas pessoas. É triste ser prisioneira da própria casa e viver limitações assim. Mas será que essa reflexão frente ao espelho pode ser o início de uma libertação?

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    1. Tomara fosse o início de uma libertação Vany, mas penso que falta coragem à protagonista. Obrigada pelo comentário!!

      Beijos!

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  5. Adorei esse texto Cidália , estou com 71anos e todos os dias me vejo Linda diante do espelho , tenho orgulho de minhas rugas .

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  6. Infelizmente a depressão é uma realidade presente na vida de muitos idosos que se afundam na tristeza por conta de doenças, limitações e até o distanciamento da família. Espero que essa reflexão em frente ao espelho seja o começo de um novo tempo na vida de Adelaide.

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    1. Muito obrigada, Patrícia, pelo comentário!! Suas palavras complementaram meu texto. Quem sabe Adelaide crie coragem para se impor não é mesmo?

      Beijos!

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  7. Ai que apertinho no coração...me lembrou muito o que a minha avó me disse uma vez, que ela se vê no espelho e não se reconhece, que por detrás da "carcaça" velha ela se sente criança, como se estivesse presa, e ai começa a chorar por depressão (ela já perdeu um filho então ela sempre teve depressão)...

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    1. Que tristeza, Gabriela!! Conheço algumas pessoas que não aceitaram a velhice do corpo e se mantêm fechadas dentro de casa, enquanto outras permanecem com a alma jovem e aproveitam ao máximo a vida. Obrigada pelo comentário!!

      Beijos!

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  8. Texto forte que retrata a realidade de muitas pessoas. Por isso sempre devemos nos atentar para as pessoas que estão à nossa volta, independente da idade. Sentimentos assim de solidão e lamento podem desencadear pensamentos ainda piores. Parabéns pelo texto.

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    1. Seu comentário complementou meu texto, obrigada, Evandro!!

      Abraço!

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  9. Olá Cidália. Esse seu texto está carregado de emoções. A verdade é que esse é a reflexão ao espelho não só dessa Adelaide, mas de muitas Adelaides desta vida. Espero que muitas leiam seu texto e que ele lhes dê a força necessária para sair desse abismo e enfrentar a doença ou a vida sem medos. Viverem da melhor forma que conseguirem.
    Parabéns por essa magnifica reflexão.

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    1. Infelizmente há muitas Adelaides por aí, Paula, espero que elas reajam!! Muito obrigada pelo comentário e elogios!

      Beijos!

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  10. Eu achei muito triste ao mesmo tempo um belo texto, depressão tristeza e um enorme perigo que não podemos voltar à vida, às vezes a vida pode jogar-nos uma peça no palco da vida, temos que saber como equilibrar.Um ótimo texto nos faz refletir muitas vezes seus gastos em ter, com a vida e o que pensamos sobre isso.

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    1. É verdade, Leny, é muito triste ver que a depressão destrói a pessoa!! Muito obrigada pelo comentário!

      Beijos!

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  11. Esse conto me emocionou tanto, tenho familiares em situação parecida e vivo em um país onde os idosos não são muito valorizados ou cuidados. Sinto que uma pessoa fica refém de uma mudança e toda a vida que conhecia se transforma em depressão e melancolia. É muito triste que as vezes até mesmo os familirias não apoiam para que aconteça uma mudança na qualidade de vida. E torço para que tanto mulheres quanto os homens, tenham forças para lutar e seguir adiante e serem felizes, mesmo com alguma doença. Parabéns pela sensibilidade e esse texto lindo! Jéssica Lopes

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    1. Pois é, Jéssica, em muitas situações a principal causa é o abandono da família, infelizmente!! Seu comentário complementou meu texto, muito obrigada!

      Beijos!

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  12. Que texto incrível, é uma ótima reflexão pra mim e pra quem ler. Mesmo eu sendo jovem percebo que tenho muitos aspecto da Adelaide, de quem eu era e de quem eu me tornei. Acredito que vou conseguir me ergue e sai do abismo que estou. Esse texto me deixou emocionada, Obrigada por ele ♥ Eu precisava ler isso.

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    1. Jullie, vou torcer para que você saia desse abismo, olhe em volta e veja que a vida, apesar de apresentar, muitas vezes, certos obstáculos, vale a pena ser vivida! Muito obrigada pelo comentário!!
      Um abração!

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  13. Adelaide não deveria ter dado ouvidos para essas pessoas e continuado sua vida do jeito que ela sempre levava. Esse texto nos ensina a não darmos ouvidos para o que as pessoas nos dizem, pois muitas vezes são por maldade ou inveja.

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    1. É verdade, Gustavo! Muito obrigada pelo comentário!!

      Abraço!

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  14. Oi
    Achei seu texto incrível perfeito, o espelho nos reflete tantas verdades que nós não queremos acreditar só li verdades no seu texto e ele nos faz refletir muito.

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    1. Que bom que você gostou do texto, Alzinete!! Muito obrigada pelo comentário!

      Beijos!

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  15. Olá Karini, tudo bem! Sua análise enriqueceu meu texto e eu a agradeço por isso. É muito triste ver o que a depressão faz com uma pessoa. Por mais que os amigos tentem ajudá-la, se a pessoa não se ajudar, é muito difícil! Obrigada pelo comentário!!

    Beijos!

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